‹ voltar
Um Leão, filho de Agostinho. As boas impressões causadas pelo novo papa.
Por Catarina Rochamonte
16 Maio 2025
Quem acompanha a saga de Robert Francis Prevost desde que ele deixou de ser cardeal e assomou à janela da Basílica de São Pedro, no Vaticano, como o novo papa, percebe que ele vem causando crescente entusiasmo.
As primeiras falas e gestos de Leão XIV – que reagiu aos aplausos dos fiéis com lágrimas – foram já cativantes. Toda simplicidade contém espontaneidade; e foram comoventemente espontâneas aquelas furtivas lágrimas vertidas em vista da multidão de fiéis que o saudava.
Eis que, em meio a esse entusiasmo, ouço de um comentarista de televisão uma comparação depreciativa para o novo papa em relação ao anterior: Leão XIV não teria o carisma de Francisco I.
Vou deixar de lado a subjetiva depreciação para concordar na objetividade da forma: de fato, o novo papa não tem o carisma do seu antecessor nem de nenhum outro papa da história; isto porque Leão XIV tem o seu próprio carisma.
O carisma do papa Leão XIV
Na teologia cristã, especialmente na tradição paulina, “carisma” vem do grego charis (graça), e significa um dom gratuito concedido por Deus ao ser humano para o bem da comunidade. Esses dons espirituais são variados e incluem capacidades como ensinar, liderar com sabedoria, profetizar, etc.
O sociólogo Max Weber, porém, deu ao termo “carisma” um significado mais secular. Para ele, trata-se de uma qualidade extraordinária atribuída a uma pessoa, que a torna capaz de exercer liderança ou autoridade com base em um reconhecimento quase mágico pelos seguidores.
Considerando esse sentido sociológico, há sempre a triste possibilidade de um líder usar mal o seu carisma ou usá-lo deliberadamente para o mal.
Não parece, porém, ser o caso de Leão XIV, que até agora tem irradiado um carisma benévolo, ancorado em formidáveis características como a própria vocação para o apostolado, a simplicidade, o equilíbrio e a coragem.
De um líder religioso católico espera-se, claro, que tenha vocação pastoral: gostar de estar junto às pessoas, mantendo-as fortes na fé comum, ou trabalhando para que se convertam.
Segundo amplamente divulgado, com gravação de inúmeros depoimentos, quando bispo na cidade de Ciclayo, no Peru, Robert Prevost foi pródigo em demonstrações de desvelo para com a gente da sua paróquia, em geral pessoas muito humildes.
Seu equilíbrio já se mostrou ao tomar para si projetos de reforma ensaiados por seu antecessor sem avançar por proselitismo de nenhuma transformação temerária; fazendo, aliás, acenos ao tradicionalismo, quando, por exemplo, adotou as vestes papais que haviam sido abandonadas por Francisco I.
Quanto à coragem, podemos destacar que o novo papa já começou sua atuação abordando os principais conflitos mundiais, prontificando-se a atuar como ponte para a paz e intermediário confiável em um contexto de forte beligerância e rudes conflitos ideológicos.
Primeiros gestos no xadrez geopolítico
Cabe salientar que o papa, além de líder religioso, é também um estadista que – mesmo sem ter divisões de exército para intervir em guerras – tem autoridade e voz que ultrapassam fronteiras. Assim sendo, revestem-se de singular relevância seus primeiros movimentos no complexo tabuleiro da geopolítica.
Leão XIV enviou, sem rodeios, mensagem ao rabino romano Riccardo Di Segni expressando seu compromisso em fortalecer os laços entre a Igreja Católica e a comunidade judaica. Isso em um momento de aumento exponencial de antissemitismo no mundo.
Na carta, o pontífice afirmou a intenção de “continuar e fortalecer o diálogo e a cooperação da Igreja com o povo judeu no espírito da declaração ‘Nostra aetate’ do Concílio Vaticano II.
A declaração ‘Nostra aetate’, promulgada em 1965, marcou um ponto de virada nas relações entre a Igreja Católica e o judaísmo, rejeitando a ideia de culpa coletiva dos judeus pela morte de Jesus e promovendo o respeito mútuo e o diálogo inter-religioso.
A iniciativa de Leão XIV para renovar as pontes entre as comunidades de fé torna-se ainda mais significativa se considerarmos o contexto de tensões recentes entre o Vaticano e Israel, especialmente após declarações do papa Francisco sobre o conflito na Faixa de Gaza.
Outro movimento não menos importante foi o gesto amistoso em direção ao povo e ao governo da Ucrânia.
Poucos dias depois da declaração na qual afirmou trazer em seu coração “os sofrimentos do amado povo ucraniano”, o papa conversou por telefone com o presidente Ucrânia, Volodymyr Zelensky e recebeu o arcebispo-mor de Kiev, Sviatoslav Shevchuk, na biblioteca do Palácio Apostólico.
Coisas novas; novos desafios
O nome de Leão do novo Papa voltou naturalmente os olhares para o outro Leão merecedor da homenagem.
Famoso especialmente pela encíclica Rerum Novarum (Das Coisas Novas), publicada em 1891, Leão XIII, que pontificou de 1878 a 1903, deixou um legado propício a ser recuperado nos tempos hodiernos.
A Rerum Novarum é um documento fundamental da Doutrina Social da Igreja, tendo marcado um ponto de virada na relação dessa instituição com as questões sociais e econômicas da era moderna, especialmente no contexto da Revolução Industrial.
Dentre as “coisas novas” de que trata a referida encíclica estavam as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos os operários naquele período.
A famosa encíclica propugnou pelos direitos dos operários e alertou quanto à responsabilidade do Estado na proteção dos mais fracos, na promoção do bem comum e no combate às injustiças, sem, entretanto, desencaminhar os fiéis pelas perigosas trilhas ideológicas.
De fato, o documento confronta tanto o capitalismo quanto o socialismo. Legitimando o direito à propriedade privada, mas afirmando o trabalho como expressão da dignidade humana e não como mercadoria, o que se propõe ali é uma espécie de terceira via baseada na fraternidade cristã.
Ao justificar o nome escolhido para o seu papado, Robert Francis Prevost reafirmou a importância da Rerum Novarum e contextualizou o novo desafio: “hoje, a Igreja oferece a todos a riqueza de sua doutrina social para responder a outra Revolução Industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial, que trazem novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”.
“Um filho de Agostinho”
“Sou um filho de Santo Agostinho”. Assim se declarou Robert Prevost em um discurso aos cardeais eleitores logo após ser eleito como novo Papa.
A ênfase da declaração indica não apenas o pertencimento à ordem agostiniana, mas também uma sólida comunhão com a visão daquele que foi um dos maiores nomes da filosofia cristã.
Sem descer aos pormenores da vasta e profunda obra do grande bispo de Hipona, pontuo aqui um aspecto da teologia agostiniana que me parece relevante no contexto desse artigo.
Para tanto, remeto o leitor à exortação apostólica Evangelii Gaudium (Alegria do Evangelho), publicada em 2013, pelo papa Francisco, na qual, dentre outras coisas, o falecido papa convida à conversão pastoral e à superação do mundanismo espiritual.
Na discussão sobre o mundanismo, Francisco refere-se ao “neopelagianismo auto-referencial e prometeuco de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças.”
Ora, a contenda teológica entre Santo Agostinho e o pelagianismo foi um dos debates mais importantes da teologia cristã nos séculos IV e V, envolvendo temas centrais como pecado original, graça divina, livre-arbítrio e natureza humana.
Pelágio negava a existência do pecado original como herança universal e afirmava ter o ser humano plena capacidade, por sua própria vontade, de cumprir os mandamentos divinos e alcançar a salvação — sem necessidade da graça.
Agostinho, por sua vez, defendia que, devido ao pecado original, o ser humano está inclinado ao mal. A vontade humana, estando corrompida, precisa da intervenção de Deus para começar e consumar qualquer obra boa.
Agostinho via na doutrina de Pelágio uma especulação que retirava o papel central de Deus, colocando-o na periferia do processo salvífico. Para Agostinho, o pensamento de Pelágio teria também por consequência negar a cruz de Cristo, pois se o homem depende só dele para se salvar, Cristo teria morrido em vão.
Ao afirmar-se “filho de Agostinho”, o novo papa, dentre outras coisas, parece colocar-se em confronto com a ideia moderna e contemporânea de autossuficiência do homem.
Agostinho descentraliza o homem, mostra-o como escravo dos seus desejos, desnuda a vontade concupiscente e afirma a absoluta necessidade da intervenção divina para que o homem saia da sua miserável condição.
Diante disso, fica a pergunta: os fiéis católicos estão de fato preparados para um papa “filho de Agostinho”? Eles têm noção da alta exigência que essa filiação implica?