‹ voltar



'Deixamos Deus agir': as mulheres católicas que rejeitam os contraceptivos

 

Olhares de julgamento, palpites não solicitados e a pergunta clássica: "Vocês não têm televisão em casa?". Essas são reações a que estão acostumados casais católicos que não usam métodos contraceptivos artificiais e aceitam todos os filhos que vierem, acreditando ser essa a vontade de Deus. Essa mentalidade tem nome: abertura à vida.

O conceito surgiu com o cristianismo e se baseia na confiança na providência divina. Para essa vertente do catolicismo, Deus teria um plano para cada família —o que não significa, necessariamente, que o casal terá muitos filhos.

'Não usamos métodos contraceptivos'

Mariana Arasaki, 40, que mora em São Paulo, tem 12 filhos e está grávida do 13º. Ela e o marido, Carlos Arasaki, 40, se conheceram no grupo de jovens de uma paróquia na zona oeste da capital paulista. Filho único, Carlos sempre quis uma família grande. Mariana também tinha o sonho de ser mãe, mas não imaginava que teria tantos filhos. Quando os dois ainda estavam se conhecendo, tiveram uma conversa que mudaria o rumo da relação.

"Ele me perguntou: 'Quantos filhos você pensa em ter?' Pensei: 'Quer saber? Vou falar logo um número alto, porque se ele se assustar, é bom que já vai embora logo de início.' Respondi: 'No mínimo quatro'", conta Mariana.

"Pensei: 'Nessa mulher vale a pena investir. Ela é diferente de todas as outras'", relata Carlos. "Eu sempre quis ter irmãos. Achava que a vida podia ser mais divertida. Então, tudo foi se encaixando."

Para Mariana, em tese, todo católico deveria ser aberto à vida, porque essa é uma das promessas que se faz no altar no dia do casamento. No rito do matrimônio, os noivos são questionados se estão dispostos a receber todos os filhos que Deus lhes confiar, educando-os na fé. Então, o casal responde que sim.

Para ela, as pessoas têm dificuldade de entender o que seria "abertura à vida". Muita gente acha que o conceito se resume ao desejo de ter muitos filhos, quando não é. Somos abertos à vida, então não usamos métodos contraceptivos. Adotar essa mentalidade significa deixar Deus agir na nossa vida. Cada família tem um chamado diferente.Mariana Arasaki

Famílias numerosas x tradwife

Quem vê Mariana na igreja, na rua ou nas redes sociais, em que compartilha sua vida com mais de um milhão de seguidores, pode imaginar que ela se encaixe no conceito de "tradwife". O termo, neologismo para "esposa tradicional", refere-se à mulher que escolhe viver de acordo com papéis de gênero tradicionalmente atribuídos ao feminino e, muitas vezes, abandona a carreira e atividades que não estejam ligadas ao lar e à família. Mariana não se vê dessa forma. Hoje, ela trabalha com as redes sociais, mas, até o nascimento do quinto filho, tinha um emprego fora de casa e sempre contribuiu financeiramente com a renda da família. Nem ela e nem Carlos acreditam que o homem deve ser o provedor, enquanto a mulher se dedica exclusivamente ao lar e aos filhos. "Inclusive, todas as nossas filhas já querem ter uma profissão e nós super incentivamos isso", diz Carlos. Se elas quiserem se dedicar ao lar e aos filhos, que assim o façam, mas que também tenham suas aspirações profissionais realizadas. E, acima de tudo, que sigam a vontade de Deus.Carlos Arasaki

Segundo a mestre em mídia e religião Nathalie Hornhardt, o conceito de "abertura à vida" surgiu da crença cristã de que Deus está no comando e que os fiéis devem se curvar à vontade dele. O conceito ganhou destaque no século 20, em especial na década de 1960, com a publicação da encíclica Humanae Vitae, do Papa Paulo 6º, sobre a regulação da natalidade. Já o conceito de "tradwife" surgiu por volta de 2010, nos EUA, e ganhou força com a popularização das redes sociais. Na internet, a maioria das "esposas tradicionais", que se dedicam exclusivamente ao lar e aos filhos, apresentam a mesma estética, que remonta à das mulheres dos subúrbios brancos dos anos 1950: vestido, avental de cozinha e casa decorada em tons pastéis.

Para Nathalie, embora conceitos de "abertura à vida" e "tradwife" tenham surgido em momentos e contextos diferentes, ambos caminham lado a lado, passando a ideia de que a mulher deve acolher a maternidade como missão e vocação. O conceito de "tradwife" surge também como uma resposta ao feminismo liberal e ao desgaste da mulher nos dias de hoje, em que ela acumula múltiplas funções. "Tem-se observado, nas redes sociais, um resgate dos valores considerados tradicionais frente a discursos contemporâneos", afirma Nathalie, professora de espiritualidade, religião e mídia na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Vem ocorrendo uma expansão mercadológica em torno desse fenômeno. Não é incomum ver a oferta de serviços como doulas católicas, ginecologistas católicos, métodos de planejamento familiar lícitos e por aí vai.Nathalie Hornhardt, professora da Faap

'Se entregar a Deus'

Diéssica Moreti, 36, que mora em Gaspar (SC), também é "aberta à vida". Ela se casou em 2011, mas não conheceu o marido na igreja. O encontro se deu em um local improvável para a união de dois cristãos conservadores: uma boate em Blumenau (SC). Diéssica sempre foi católica, mas nem sempre foi "aberta à vida". No início do relacionamento, ela e o marido usavam métodos contraceptivos —algo que ela entende hoje como "pecado grave". Ao longo do tempo, entendeu que precisava "entregar a vida a Deus e confiar totalmente nos planos d'Ele". Ela tem seis filhos.

“A abertura à vida consiste em se entregar a Deus e entender que Ele sabe de todas as coisas. Pode ser que, naquele momento, você acredite que a situação não esteja tão boa, mas, para Deus, aquele é o momento de você provar se realmente tem a fé que diz ter.”  Diéssica Moreti

Apesar de confiar na providência divina, Diéssica é adepta de uma prática comum entre os cristãos e recomendada pela Igreja: o método Billings, que consiste na observação do muco vaginal para identificar períodos em que a mulher tem mais ou menos chance de engravidar. Ele pode ser usado tanto para prevenir a gravidez em momentos difíceis quanto para alcançá-la.

'Defendo que só o marido provenha'

Diéssica tem renda própria: é dona de uma loja de roupas infantis voltada para famílias cristãs, e o faturamento da empresa é essencial para o sustento da família. Apesar disso, entende-se como uma "tradwife". Isso porque, se não houvesse necessidade, optaria por não ter um trabalho remunerado e se dedicaria exclusivamente ao cuidado com o lar e os filhos. Para ela, o homem deve, sim, ser o único provedor da casa, se a realidade permitir.

"Minha mãe sempre me ensinou a trabalhar e a correr atrás dos meus objetivos. Tanto é que eu trabalhava fora até ter o meu primeiro filho", afirma. A partir do terceiro, meu marido e eu começamos a pensar na possibilidade de eu ter um trabalho que pudesse exercer sem sair de casa. Apesar disso, se a mulher tem condições de se dedicar exclusivamente ao cuidado com o lar e com os filhos, eu defendo que só o marido provenha.

'Não ouvi o conselho da minha avó'

Este é o caso de Lívia Marques, 35, de Fortaleza. Ela e o marido se conheceram em uma carona, indo para a igreja, e se casaram em 2013. Tiveram seis filhos e pretendem ter ainda mais, "se essa for a vontade de Deus".

Dentista de formação, Lívia trabalhava fora de casa até o nascimento do primogênito, Davi, de 10 anos. Hoje, o marido é o único que contribui financeiramente com o sustento da família, e ambos estão de acordo com essa decisão.

"Quando meu primeiro filho nasceu, meu marido me ofereceu a possibilidade de ficar em casa. No início, fiquei apreensiva, porque tive uma criação totalmente diferente. Minha avó dizia: 'Não fique em casa, vá ter sua vida, seja doutora'. Acabei não ouvindo o conselho dela", conta.

“Sempre trabalhei, mas hoje me sinto confortável com o fato de o meu marido me bancar. Ganho um dinheirinho aqui e acolá com as redes sociais, mas quem sustenta a casa é ele. Se algum dia eu tiver de voltar a trabalhar como dentista, tudo bem também, isso não é um problema.” Lívia Marques

Lívia tem uma funcionária que trabalha de terça a sexta. Nos demais dias, fica encarregada das tarefas domésticas, enquanto o marido trabalha fora.

Diéssica e Mariana também têm rede de apoio. Enquanto Diéssica tem a ajuda de uma diarista uma vez por semana, Mariana dispõe de uma faxineira duas vezes por semana e de quatro babás —duas delas trabalham durante a semana e as outras duas no sábado e no domingo.

"Contratar uma babá não significa delegar sua função de mãe. Ela está lá para te auxiliar, para que você possa tomar um banho tranquilamente ou almoçar com suas amigas. Assim você consegue se reconectar com você mesma e cultivar uma maternidade mais leve", diz Mariana.

Fonte: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2025/07/07/casais-catolicos-rejeitam-contraceptivos-somos-abertos-a-vida.htm

Busca


Sábado, 12 de Julho de 2025










Mulher Vestida de Sol