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‘Porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino, e haverá fomes, e PESTES, e terremotos, em vários lugares.’ (Mateus 24, 7)


"...HAVERÁ PESTES..." (Mt 24,7) A bactéria comedora de carne que ameaça se espalhar pela Austrália

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Adam Noel achou que era apenas uma picada de mosquito. Ele notou um leve calombo vermelho na parte de trás do tornozelo cerca de uma semana antes, mas não melhorava. Os médicos atribuíram a algum tipo de irritação na pele. No entanto, mais duas semanas se passaram, e seu calcanhar agora tinha um buraco.  "Há algo muito estranho acontecendo", ele pensou, e decidiu ir até o Hospital Austin, em Melbourne, para ser examinado novamente.

Era abril de 2020, e a pandemia de covid-19 tomava conta da Austrália. A equipe do hospital estava sobrecarregada. E os médicos disseram a ele que a ferida sararia em breve. Em vez disso, depois de mais alguns dias, era possível ver seu tendão de Aquiles por meio do buraco do tamanho de uma bola de pingue-pongue em seu calcanhar. Desta vez, ele foi para o St Vincent's, um dos principais hospitais da Austrália. E ficou internado por cerca de uma semana fazendo biópsias até finalmente confirmarem o diagnóstico: úlcera de Buruli. Uma doença bacteriana que pode causar grandes feridas abertas e, se não for tratada, levar à desfiguração permanente.

Foram cerca de seis semanas desde que Noel percebeu o calombo até fazer uma biópsia definitiva e tomar a medicação certa. Os médicos disseram que ele podia ter perdido o pé. Antes de notar o que pensava ser uma mera mordida de mosquito, Noel vinha trabalhando muito no jardim, mexendo na terra para abrir espaço para um grande galpão. "Cortei um monte de árvores que não eram mexidas há 20 anos", diz ele. "Estou bastante convencido de que [pegar a úlcera] coincidiu com a destruição das árvores e do habitat dos gambás."

Sim, gambás. Os cientistas acreditam que essas criaturas noturnas fofas podem desempenhar um papel fundamental na transmissão da úlcera de Buruli para os humanos. Eles também sofrem com a doença, e a bactéria do Buruli — chamada Mycobacterium ulcerans — é encontrada em grandes quantidades em suas fezes. Os gambás perderam grande parte do seu habitat natural para o desenvolvimento urbano nos últimos anos, o que os aproximou dos humanos enquanto as duas espécies competem por espaço e, possivelmente, gerando casos da doença. Antes restrita aos subúrbios, a úlcera de Buruli está agora se aproximando de Melbourne, e médicos e cientistas estão tentando impedir seu avanço antes que ela atinja a população de cinco milhões de habitantes.

 

Uma ameaça crescente

Noel mora em Melbourne, mas sua família tem uma casa de praia a cerca de 100 km de distância, na Península de Mornington. É uma área nobre que aparece no mapa como uma perna do continente, com a ponta do dedo do pé apontando para o oeste. É um destino de férias popular entre os moradores da cidade, com suas praias cercadas por cabanas coloridas e passarelas de madeira que serpenteiam as colinas com vista para o mar. Trilhas levam a lugares como a "Diamond Bay" e o "Millionaire's Walk", onde as casas são grandes e modernas, muitas com piscina e jardins enormes.

Não é exatamente o tipo de lugar em que você esperaria ouvir falar sobre uma bactéria devoradora de carne à solta, mas os casos de úlcera de Buruli no estado de Victoria tendem a ser encontrados nessa região. Em todo o estado, o número de casos mais do que triplicou nos últimos anos: em 2014, os médicos notificaram 65 casos da doença; em 2019, foram registrados 299, enquanto no ano passado, 218.

Quando há suspeita da doença, o paciente geralmente é encaminhado para o médico Daniel O'Brien, infectologista especialista em úlceras de Buruli que tem uma clínica nas proximidades de Geelong.Ele começou a fazer a travessia de 40 minutos de balsa semanalmente para ver o número crescente de pacientes com a doença. Ele conta que atende de cinco a dez novos pacientes por semana.

A úlcera de Buruli pode destruir rapidamente a pele e os tecidos moles se não for tratada com uma combinação de antibióticos e esteroides específicos ao longo de semanas e, em muitos casos, meses.  "Não importa o quão pequena ou grande seja a lesão, não há ninguém que não seja significativamente afetado por essa doença", diz O'Brien. Os impactos físicos são significativos: a úlcera agressiva pode causar desfiguração, exigindo cirurgia e levando à incapacidade de longo prazo.  "Ela pode realmente devorar um membro inteiro", explica O'Brien, cuja lista de pacientes inclui crianças que precisaram de até 20 operações para combater a úlcera.

A doença também tem um impacto econômico. Noel trabalha na novela Neighbours e teve de se ausentar por um mês porque o buraco no calcanhar o impediu de ficar de pé por um longo período de tempo.

Os tratamentos também podem fazer com que as pessoas se sintam muito mal. Foi o caso de Noel com os esteroides. "Fiquei muito feliz quando paramos", diz ele. Mas, sete meses depois, ele ainda precisa tomar antibióticos.

Outros pacientes relatam que os antibióticos causam náusea, candidíase vaginal e oral e dor de estômago. "É difícil. É muito desconfortável e muito desagradável", afirma Cheryle Michael, aposentada que teve úlcera de Buruli no rosto em agosto de 2020 e ainda está tomando medicamentos. "Os esteroides me deixaram muito deprimida, cansada e desmotivada", acrescenta. Os antibióticos, por sua vez, provocam problemas estomacais que a deixam nervosa ao sair de casa. "Para ser franca, prefiro não ficar muito longe do meu banheiro."

A úlcera de Buruli é tratada com uma dose forte de dois antibióticos potentes que precisam ser tomados por várias semanas e, muitas vezes, meses: a rifampicina, que também é usada no tratamento de outras infecções bacterianas graves, incluindo tuberculose e hanseníase, e a moxifloxacina, que pode ser usada para tratar a peste. Dependendo da gravidade da úlcera, altas doses de esteroides também são necessárias, assim como cirurgia.

"Eu não diria que qualquer tratamento é fácil. [Os pacientes] todos sofrem em um grau significativo", diz O'Brien.

 

Úlcera desconhecida

Enquanto a úlcera de Buruli devora os tecidos moles dos pacientes, algumas perguntas sem resposta atormentam médicos e cientistas encarregados de tentar impedir que outras pessoas sejam infectadas. "Não sabemos o suficiente a respeito. Há algumas questões científicas realmente importantes sobre onde ela deixa o meio ambiente, os outros reservatórios animais e como os humanos realmente a contraem", explica O'Brien. "A menos que obtenhamos respostas para essas perguntas vitais, realmente vamos ter dificuldade para controlar a doença."

Atualmente, os cientistas estão trabalhando com a hipótese de que a bactéria é amplificada por gambás e suas fezes. Mosquitos e outros insetos que picam transportam então essa bactéria dos gambás ou do ambiente para os humanos, ao perfurar sua pele e deixar a bactéria que vai causar a úlcera de Buruli. Mas isso continua sendo uma teoria, e ninguém sabe ao certo se os humanos estão contraindo a doença de mosquitos, do solo ou dos próprios gambás.

A úlcera de Buruli é classificada como uma doença "negligenciada" pela Organização Mundial da Saúde (OMS): não recebe muita atenção e não se sabe muito sobre ela. Foi descoberta pela primeira vez em 1897 em Uganda, mas como afeta sobretudo comunidades pobres com cuidados de saúde limitados, "simplesmente não havia dinheiro para realmente investir tempo, esforço e recursos na pesquisa", afirma O'Brien. Sua própria experiência vem de passar anos trabalhando na África Ocidental, tratando de pacientes com úlcera de Buruli e doenças relacionadas: lepra e tuberculose.

Quando a úlcera de Buruli apareceu pela primeira vez no estado de Victoria em 1948, havia apenas um punhado de casos. Mas agora, segundo especialistas, a doença está se tornando mais comum na Austrália. Ninguém sabe como ela chegou aqui. Até mesmo algumas pessoas que vivem no meio da península dizem que nunca ouviram falar dela, afirma Kim Blasdell, pesquisadora sênior da CSIRO, agência nacional de ciências da Austrália. Ela está liderando um estudo para entender a possível ligação entre gambás, a úlcera de Buruli e os humanos. "Se há pessoas que vivem nas áreas de foco da doença que não ouviram falar dela, então a maioria das pessoas fora dessas áreas também não terá ouvido falar", diz ela.

Isso pode ser um grande problema: pacientes desinformados que esperam semanas pelo diagnóstico podem ser potencialmente desastrosos, como aconteceu no caso de Noel. 

 

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